domingo, outubro 04, 2009

Quando era estudante de letras e história na Universidade de Michigan, Sam Raimi decidiu que faria filmes, mas não sabia por onde começar. O passo óbvio seria fazer uma escola de cinema e iniciar a profissão como um mortal comum. Mas Raimi nunca teve a vocação para seguir regras. Passou a fazer comédias bobas em Super-8 e anunciava exibições baratas no jornal local. O jovem cineasta ficava nas exibições para ver como a plateia reagia a seus erros e acertos. Empolgado com a evolução da sua técnica, Sam gastou todas as suas economias (US$ 4 mil) para alugar uma sala de cinema e projetar uma de suas obras amadoras. Apenas uma pessoa apareceu... e saiu dez minutos depois, gritando palavras de baixo calão.

A experiência não desanimou o futuro diretor. Quando ele resolveu investir US$ 40 mil em um filme de terror aos 21 anos, um grupo de médicos ajudou no investimento em troca dos direitos de distribuição do longa. O resultado foi uma produção de horror que mudou o gênero para sempre. Extremamente violento, com elenco formado por semiprofissionais, barato e bem-humorado, A Morte do Demônio foi um sucesso de bilheteria, ganhou status instantâneo de cult e revelou ao mundo um cineasta inventivo. E foi assim, passando por cima de tabus hollywoodianos, que Sam Raimi fez mais duas sequências para a saga de horror, assumiu uma franquia bilionária de super-heróis (O Homem-Aranha) e voltou a dirigir um novo longa de terror quase 15 anos depois de ter filmado Uma Noite Alucinante 3. A principal característica de Arrasta-me para o Inferno, que estreia neste mês no Brasil, é justamente a quebra dos clichês do estilo.

1 — Pureza dos Heróis

Os (as) mocinhos (as) sempre são inocentes e incapazes de praticar atos conscientes de maldade nas obras de terror dos últimos anos. Quando escorregam no caráter, são perseguidos por isso — por exemplo, os jovens assassinos de Eu Sei o que Vocês Fizeram no Verão Passado (foto à esq.). Raimi não quer saber disso em Arrasta-me para o Inferno. A protagonista, Alison Lohman, faz uma gerente de banco ambiciosa que, almejando uma promoção, nega uma nova hipoteca para uma pobre idosa. Premissa cruel em tempos de recessão nos Estados Unidos.

2 — A dama em Perigo

Se o horror gerou rainhas do grito como Jamie Lee Curtis em Halloween (foto à dir.) e a Sarah Michelle Gellar de O Grito, Arrasta-me para o Inferno troca a mocinha indefesa pela gatinha que tem garganta, mas sabe como usar as mãos. Numa das sequências mais marcantes, a protagonista sai no braço com a velha cigana que a amaldiçoa após o empréstimo ser negado, com direito a um grito de vitória nada politicamente correto: "Te detonei, vaca velha!".

3 — Fantasmas de Crianças

A maior praga do cinema de horror moderno surgiu no Oriente no fim dos anos 90. Após o sucesso de Ringu, de Hideo Nakata, e do remake americano, batizado de O Chamado (foto à esq.), fantasmas infantis passaram a ser quase uma obrigação no gênero — nem o fenômeno O Sexto Sentido escapou da armadilha. Entre longas horrorosos (Alma Perdida, Medo.com), boas ideias (O Orfanato, Os Outros) e adaptações (Terror em Silent Hill), o horror moderno incorporou o estilo. Aliás, nem o próprio Sam Raimi escapou da moda ao produzir o fraco O Grito. Mas ele não quis saber de Gasparzinho em seu retorno ao terror. A única criança atormentada no longa é possuída pelo demônio Lamia (clara homenagem a Night of the Demon, filme dirigido por Jacques Tourneur em 1957) e é, literalmente, sugada para o inferno nos primeiros dez minutos.

4 — Diversão proibida

O horror sempre se levou muito a sério. Alguns especialistas defendem que a qualidade do filme tem a ver com a falta de humor na trama. Raimi, mais uma vez, subverte o gênero de forma radical. Da mesma maneira que produz cenas escatológicas e assustadoras, o cineasta não tem vergonha de causar risadas. Qual longa mostra a protagonista quase engolindo o olho de vidro da vilã ou acabando um funeral ao tropeçar no cadáver? Os fãs mais conservadores tendem a ficar perdidos com a mistura de estilos, mas é o que o cineasta mais gosta de fazer desde Uma Noite Alucinante (foto acima) — sua marca é sempre uma referência aos Três Patetas, de quem é fã declarado — e gerou seguidores importantes como Peter Jackson (Os Espíritos, O Senhor dos Anéis) e Guillermo Del Toro (Hellboy).

5 — Ninguém Acredita na Mocinha

Nos filmes de terror gerados pela safra pós-Pânico, a vítima sempre é ridicularizada ao falar que está sendo perseguida por um maníaco ou maldição. Não é o que acontece em Arrasta-me para o Inferno: a mocinha recebe o apoio do noivo (Justin Long), que a apoia mesmo quando a história de que um demônio levará sua amada para o inferno em três dias fica cada vez mais absurda (foto à dir.).

6 — Ser Minoria é fatal

É uma regra tão antiga quanto o terror no cinema. Se você faz parte de uma minoria, o Jason (foto à esq.) de Sexta-Feira 13 vai passar o machado sem dó até restar apenas o casal branco, heterossexual e bonito que protagoniza as obras. Sam Raimi até usa um casal wasp como a estrela do longa, mas eles precisam recorrer a um vidente do Leste Europeu. Além disso, a médium que pode salvar a vida de Christine Brown é uma mexicana, interpretada por Adriana Barraza (indicada ao Oscar por Babel).

7 — Faça sexo e morra!

Como Sam Raimi escreveu o roteiro em 1992 e queria fazer uma homenagem aos filmes de terror da década de 1950, não há muito sexo em Arrasta-me para o Inferno, o que chega a ser uma afronta às novas regras do gênero.

8 — Salve os Animais

Se Sylvester Stallone quase morre ao salvar um cãozinho em Daylight, a mocinha Alison Lohman não quer saber de clichês hollywoodianos no filme. Quando ela descobre que o sacrifício de um animal pode livrá-la da maldição da cigana, não pensa duas vezes em passar a faca no gatinho que ganhou — apesar de o sangue de bode ser mais potente.

9 — Os vilões só morrem no final,

mas ressuscitam

Não adianta matar Jason, Freddy Krueger (foto à dir.) ou Michael Myers: eles sempre voltam nas continuações. E morrem invariavelmente no final do filme seguinte. Sam Raimi é mais rápido. Ele mata a cigana-bruxa da atriz Lorna Raver já na metade de sua história. Mesmo no caixão, ela consegue atormentar a vida da sua inimiga até os minutos finais — em outro tributo de Raimi, agora a Poltergeist.

10 — Finais felizes

Bem, o editor desta reportagem disse que transformaria minha vida num filme de terror se eu revelasse o final. O que eu posso dizer é que Arrasta-me para o Inferno, acredite, não tem esse nome à toa.


autor: Rodrigo Salem

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